quinta-feira, 12 de março de 2009

O Camarão e o Pequeno Hans



De tempos em tempos costumo ler em jornais alguma pesquisa sobre os sonhos, seu funcionamento e para que eles servem. Porém, para mim, desde que Freud escreveu "A Interpretação dos Sonhos", todas as publicações posteriores sobre o assunto perderam o sentido uma vez que aquela obra abordou ampla e profundamente este tema esgotando quaisquer outras especulações. Daquele livro lembro-me de vários fenômenos que ocorrem durante nosso sono, mas no momento falaremos especificamente de dois deles, resultantes do relaxamento de nosso superego: o deslocamento e a condensação.

Podemos citar o trocadilho como sendo um exemplo de condensação onde duas palavras unem-se, ou melhor, se "condensam" para formar uma outra. Este neologismo é uma manifestação legítima do inconsciente. Durante o sonho manifesta-se quando um personagem possui voz de uma pessoa, corpo de outra, representando às vezes uma terceira. Já o deslocamento é mais fácil de ser detectado e o constatamos ao dar importância exagerada a pessoas ou fatos que normalmente nos passam despercebidos.

Enquanto vivo, Freud nos apontou um caso clássico de deslocamento cujo protagonista ficou conhecido como Pequeno Hans. Este garoto, filho de um conhecido, repentinamente foi tomado de imensa fobia por cavalos. E como no início do século XX este animal puxava as carruagens pelas cidades, podemos bem imaginar o martírio que significava sair à rua para Hans e sua família.

A fobia do Pequeno Hans possibilitou a Freud desenvolver sua teoria do Complexo de Castração. Não era a causa mas sim efeito de um conflito visto como insuportável para o garoto, libido transformada em ansiedade e projetada para um objeto externo. Freud concluiu que Hans deslocava para os cavalos a sua destrutividade e temores sentidos em relação a seu pai. No seu mundo interno e inconsciente, os cavalos seriam o substituto simbólico de seu pai que Hans um dia desejou ver cair e quebrar as pernas, quando o via subir as escadas para ficar com "sua mamãe". É muito mais fácil para qualquer um possuir fobia a cavalos que ao próprio pai.

No mundo moderno observamos uma doença incoerente, aparentemente sem causa específica que pode surgir de uma hora para outra. Esta doença chama-se Alergia. De repente o indivíduo se vê impedido de desfrutar ou absorver determinadas substâncias pelo fato de que o contato ou consumo do mesmo podem dar início a uma reação corporal de graves conseqüências. Essa aversão a determinados produtos pode ser comparado à aversão do Pequeno Hans aos cavalos.

A descoberta da substância prejudicial é difícil e incerta mas o certo é que ao consumir o "produto proibido" inadivertidamente, caso o indivíduo continue sem a ciência deste consumo, muitas vezes ele não costuma apresentar quaisquer efeitos colaterais por isso, acontecendo o contrário tão logo perceba ou mesmo desconfie de sua presença. E devido à dificuldade na detecção dessas possíveis causas da alergia, as pessoas fazem um retrospecto do comportamento e, principalmente, de seus hábitos alimentares a fim de confeccionar uma listas de itens "suspeitos", sem se dar em conta que tal como acontecia ao Pequeno Hans, a verdadeira razão desta manifestação alérgica dificilmente será descoberta em um consultório médico.

O camarão, popularmente, é considerado como o principal causador de quase metade dos casos de alergia. Diferentemente dos cavalos de Hans, este pequeno e inocente crustáceo está convenientemente sempre longe da gente, quase não se encontra nas refeições e muito menos costumamos cruzar com ele no nosso dia a dia. Apesar de às vezes andar por aí disfarçado de bobó, empadinha, risólis ou risoto, ainda sim é capaz de causar verdadeiros estragos aos alérgicos de plantão. O jeito é partir para as massas.